“No princípio, criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas” (Gênesis 1: 1 e 2).
No primeiro versículo da Bíblia, é dito que Deus criou céus e terra, mas o segundo versículo, estranhamente, diz que a terra era sem forma e vazia, havendo trevas sobre a face do abismo. Isso soa muito estranho, pois há inúmeros versículos em Jó, nos Salmos, em Eclesiastes, nos Profetas, assim como em todo o restante da Bíblia, dizendo que Deus criou tudo com harmonia e ordem.
O versículo dois de Gênesis diz que havia um caos (Tohu-bohu em hebreu). Uma tradução mais literal do segundo versículo da Bíblia deveria registrar que “a terra VEIO A SER sem forma e vazia”. O termo hebraico hayah é traduzido como “se tornou” 67 vezes (Gn. 2:7; 19:26; 20:12; 24:67 etc.), “veio” e “aconteceu” 505 vezes (Gn. 6:1; 11:2; 14:1 etc.) e “virá a ser” 66 vezes (3:22; 18:18; 48:19 etc.). É também traduzido como “passou a ser” em I Cr. 17:22 e Ez. 16:8 e como “haver” no sentido de “tornar-se” (Gn 1:3, 6. 9, 14; 3: 5 etc.). Isto significa que Deus criou céus e terra em ordem, mas algo aconteceu para gerar o caos.
O Dr. Aníbal Pereira dos Reis explica o seguinte em seu livro intitulado O DIABO:
“Os dois primeiros versículos de Gênesis, se bem os examinarmos, supõem a existência do Universo todo, inclusive da terra, bem antes de haver Deus preparado este globo para a habitação do homem... A partir do v. 3 é que se começam a contar os seis dias da sua reconstrução e da organização para receber a humanidade [...] É relevante a advertência – insiste-se – de que a expressão hebraica TOHU-WA-BOTTU de Gn. 1: 2, traduzida por ‘sem forma e vazia’ significa uma situação caótica resultante de uma catástrofe. Aquelas palavras da língua hebraica do primeiro livro do Pentateuco não denotam simplesmente carência de desenvolvimento ou fase de conclusão, mas demonstram uma condição de escombros, de que havia uma ordem anterior totalmente revolta ou revolvida por uma catástrofe."
“De resto, o próprio Deus, em Is. 45: 18, declara não ser aquela a constituição original da terra, pois ‘Ele a estabeleceu, NÃO A CRIOU VAZIA, mas a formou para que fosse habitada, NÃO A CRIOU UM CAOS, UMA DESOLAÇÃO” (O DIABO. São Paulo: Edições Caminho de Damasco, 1976, p. 26, 33).
É bom salientar que isso nada tem a ver com qualquer aprovação à teoria da evolução, com a qual Aníbal discorda completamente. Seguem as suas palavras no mesmo livro:
“O vocábulo BARA com o seu sentido de criar algo tirado do nada, EX NIHILO, dos versículos 21 e 27 repele qualquer modalidade de evolução, inclusive a mitigada, defendida pelos teólogos modernistas (?)” (p. 27).
No livro PENTATEUCO, OS CINCO LIVROS DE MOISÉS da EETAD (Escola de Educação Teológica das Assembléias de Deus), está dito:
“O versículo 2 diz: ‘A terra, porém, era sem forma e vazia...’. O verbo ‘era’ é também traduzido por ‘veio a ser’, dando assim a idéia de que, originalmente, a terra não era sem forma e vazia. Em Isaías 45: 18, diz o Senhor ‘que criou os céus, o único Deus que formou a terra, que a fez e a estabeleceu; que não a fez para ser um caos, mas para ser habitada’. Portanto, se o segundo versículo do primeiro capítulo de Gênesis declara que, no princípio, a terra era sem forma e vazia (um verdadeiro caos) deve ter acontecido algo com ela, talvez um cataclismo, levando-a a esse estado. Se isto é fato, deduzimos que houve um grande espaço de tempo entre os fatos registrados no versículo 1 e os registrados no versículo 2” (p. 22).
A. A. Hodge (1823-1886), em seus Esboços de Teologia, disse:
“No princípio Deus fez o céu e a terra, DEPOIS disso existiu o CAOS, porque se diz então que ‘a terra era vã e vazia’ e o Espírito de Deus pairava sobre o abismo” (ESBOÇOS DE TEOLOGIA, São Paulo: PES, 2001, p. 323).
Nessa parte da obra traduzida para o português, em cima da palavra “vã”, há um asterisco que remete para seguinte nota do tradutor:
“Assim Figueiredo. Devia ser, porém, ‘estava em desolação, em estado caótico’”.
É bom dizer que Charles Spurgeon disse o seguinte sobre a obra de A. A. Hodge:
“Recomendamos os ESBOÇOS DE TEOLOGIA a todos os que gostariam de ser bem instruídos na fé. É um livro de texto padrão do nosso seminário. Divergimos dos seus ensinos sobre o batismo, porém, em tudo o mais endossamos Hodge em cada detalhe”.
Na Bíblia DAKE, há o seguinte comentário:
“Uso do ‘e’ em Gênesis 1-2 (1.2) – ‘E’ é usado 153 vezes em Gênesis 1-2 para separar os 102 registros dos atos independentes de Deus. O v. 2 é tão independente do v. 1 sobre tempo e assunto como todos os outros atos separados de Deus. O v. 1 refere-se a todo o universo sendo criado inabitado em um passado sem data, enquanto o v. 2 refere-se ao caos por causa do pecado. Os vv. 3-31 mostram a restauração da terra ao estado anterior ao caos, e sua segunda habitação com o homem e a criação de seres terrestres e marítimos, aproximadamente 6.000 anos atrás.”
Scorfield faz o seguinte comentário a Gn. 1: 2:
“Foram propostas duas principais interpretações para explicar a expressão ‘sem forma e vazia” (heb. Tohu e vabohu). A primeira, que pode ser chamada de ‘interpretação do caos original’, considera que essas palavras são uma descrição da matéria original amorfa na primeira etapa da criação do universo. A SEGUNDA, QUE PODE SER CHAMADA DE ‘INTERPRETAÇÃO DO JUÍZO DIVINO’, VÊ NESSAS PALAVRAS UMA DESCRIÇÃO APENAS DA TERRA E NUMA CONDIÇÃO SUBSEQUENTE A SUA CRIAÇÃO, NÃO DE SUA FORMA ORIGINAL (comp. Notas em Is. 14: 12; Ez. 28: 12).”
Conforme se pode perceber, Scorfield, o grande mentor do fundamentalismo, manifesta simpatia pela segunda teoria, para a qual aponta versículos de fundamentação. A primeira teoria, a do “caos original” é fruto de uma influência pagã. Os gregos criam que a matéria era eterna e que Deus apenas dera-lhe ordem. A matéria seria o princípio da desordem, do fatídico, da sorte. A forma seria o princípio da racionalidade. Embora os “deuses” (derivados da religião cultural) impusessem ordem à matéria (derivada da religião da natureza), nunca o faziam de modo completo, pois o “caos” também tinha força divina[1]. Os que defendem o caos original fazem concessão à mitologia grega em sua idéia de matéria antes da forma. No caso, eles terão que admitir a eternidade da matéria ou a criação em duas fases. Os que defendem a criação em duas fases falam na criação primária (matéria) e secundária (forma). Os tais limitam o poder de Deus, pois, supõe um poder inerente ao caos criado, o qual teria resistido ao poder de Deus para receber forma imediata.
Em seu livro As Raízes da Cultura Ocidental, o calvinista Herman Dooyeweerd dedica inúmeras páginas ao confronto da visão cristã de integração com a visão grega dualista de forma e matéria. Para Dooyeweerd, a dicotomia grega da forma e matéria entrou no pensamento católico romano através de suas concessões à filosofia, mas não deve entrar no pensamento genuinamente evangélico.
Deus criou o mundo de modo imediato com forma e matéria pela sua Palavra, mas algo cataclísmico aconteceu gerando a desordem. Depois disso, Deus reorganizou a terra do caos para a habitação do homem.
Isaías explica:
“Porque assim diz o Senhor que tem criado os céus, o Deus que FORMOU (= deu forma, ordem) a terra e a fez; ele a estabeleceu, NÃO A CRIOU VAZIA (= PARA SER UM CAOS), mas a formou para que fosse habitada.” (Isaías 45: 18)
Magno Paganelli, em seu livro CIÊNCIA E FATOS BÍBLICOS, comenta:
“Moisés, em Gênesis, diz que a terra era (alguns tradutores preferem ‘se tornou’) vazia. Isaías diz que Deus ‘... não a criou vazia’, e a formou ‘para ser habitada’. A interpretação proposta por grande parte dos estudiosos das Escrituras é que o primeiro verso de Gênesis refere-se diretamente a Isaías 45; 18. [...] há um intervalo de tempo entre os versículos 1 e 2 de Gênesis, já que num primeiro instante Deus criou a Terra com forma e habitada (situação 1, Gn. 1:1 e Is. 45:18) e a partir do segundo versículo a Terra tornou-se sem forma e desabitada (situação 2, Gn. 1: 2ss). Esse espaço de tempo não é determinado...” (p. 31-32)
Jeremias, ao profetizar sobre uma invasão estrangeira e destrutiva sobre Israel, descreve o cenário assolado assim:
“Observei a terra, e eis que estava assolada e vazia; e os céus não tinham a sua luz” (Jeremias 4: 23).
As trevas são sempre resultado de juízo, nunca da criação (Gn. 6-8; Ex. 10: 21; Jer. 4: 23; Jl. 2: 31; Ap. 6: 12; 8:12: 9:2; 16: 10).
Pela leitura dos versículos acima, se pode concluir que Deus criou a terra em ordem, mas um acontecimento destrutivo gerou o caos. A narração do Gênesis segue falando da reorganização da terra para morada dos vários seres e do homem.
O acontecimento destrutivo só pode ter sido a queda de Satanás. Jesus disse que viu o diabo cair como um raio. O impacto da queda do maligno sobre a terra foi cataclísmico. A Bíblia diz que o Diabo esteve na terra (em um Éden mineral, não vegetal – Ezequiel 28: 13) antes da sua queda (Ezequiel 28: 13). Quando o Satanás decidiu rebelar-se contra Deus, ele estava na terra e não no céu (Isaías 14:13-15; Apocalipse 21:27).
Em seu livro O DIABO (já citado), O Dr. Aníbal Pereira dos Reis comenta o seguinte sobre Ezequiel 28: 1- 19:
“O Éden descrito na perícopa ezequiana difere completamente do Éden de Adão. Aquele se destaca pela sua beleza mineral, portanto, anterior ao de Adão, que se salienta pela beleza vegetal.
Chamam-nos a atenção duas expressões do v. 14: ‘Te estabeleci’ e ‘monte santo’. Aquele rei (rei de Tiro) não poderia ter sido constituído por Deus em autoridade no Éden. Satanás, sim, que, na qualidade de ‘querubim ungido’ fora investido de autoridade – ‘para proteger’ – e isso por nomeação divina: ‘Te estabeleci’.
A expressão ‘monte santo’ sugere também que Lúcifer possuía um reino do qual fora constituído soberano. De resto, a palavra ‘montanha’, quando empregada como símbolo nas Escrituras, se aplica a reino (Cf. Is. 2: 2 e Dn. 2: 35) [...] Do Éden (Cf. Ez. 28: 13) intentara exaltar-se acima do trono de Deus, subindo ao céu para ser CONTRA DEUS (cf. Ez. 28: 13-14). E Jesus o vê precipitar-se! Aos seus discípulos dirá: ‘Eu via satanás, como raio, cair do céu’(Lc. 10: 18)” (p.25, 31)
Wim Malgo, em seu livro O QUE VIRÁ AMANHÃ, explicou:
“Em Gênesis 1: 1, nos é apresentado o mundo anterior: ‘No princípio criou Deus os céus e a terra’. Não conhecemos essa criação. Depois está escrito: ‘A terra, porém, era sem forma e vazia...’ (v. 2). Melhor traduzido, deveria estar escrito: ‘A terra tornou-se sem forma e vazia’, pois, após a primeira criação aconteceu a queda de Satanás. Com isso, a terra foi afetada de tal maneira que tornou-se ‘sem forma e vazia’. Depois daquelas épocas que são citadas em Gênesis 1: 2, começam os seis dias em que Deus preparou a terra e o céu para o homem” (O QUE VIRÁ AMANHÃ. Porto Alegre: Chamada da Meia Noite, s.d., p. 14-15).
O Dr. M. Lloyd-Jones disse:
“Não posso imaginar um ato divino de criação passando por um estágio caótico em nenhum ponto. Não posso acreditar que a criação, como uma obra realizada por Deus, tenha sido, nalgum estágio, um abismo, um vazio, um caos. Isso não se encaixa na obra executada por Deus... Caótico jamais! Por mais rudimentar que seja a forma, por mais embrionária, nunca caótica, jamais há este senso do vazio. Não obstante, se nos diz que o Espírito pairava sobre este caos, sobre este abismo, incubando-... Assim, PODE MUITO BEM SER QUE AQUELA TEORIA ESTEJA CERTA” (O COMBATE CRISTÃO, São Paulo: PES, 1991, p. 68).
De que teoria Lloyd-Jones está falando? Ele explica:
“Mas também pode incluir a idéia de que Deus fez um mundo, um cosmos, no qual estes principados e poderes angélicos viviam, agiam e habitavam. Contudo, quando alguns deles caíram em sua rebelião, orgulho e desobediência, Deus puniu o universo deles também, e este foi reduzido a um estado de caos. Desta forma, o que vem descrito em Gênesis 1, versículo 2 em diante, é a restauração, a recriação desta criação original que entrava numa condição de caos e tremor” (Idem, p. 68).
Assim, houve um juízo sobre a terra antes da criação do homem, bem como o que veio com a queda do homem e o que sobreveio no dilúvio. A terra pré-diluviana também foi alterada pelo dilúvio que puniu a multiplicação do pecado humano. Antes do dilúvio, havia águas acima da terra e não havia necessidade de chuva, pois um vapor subia da terra e regava tudo (Gênesis 2:6). O mundo pós-diluviano sofreu uma segunda decadência depois da queda de Adão. O pecado sempre gera efeitos cósmicos destrutivos, seja ele o de Satanás, o de Adão ou o da geração pré-diluviana. Deus, porém, é sempre poderoso para fazer a ordem triunfar no final!
Pastor Glauco Barreira M. Filho
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[1] KEELEY, Robin. Fundamentos da Teologia Cristã. São Paulo: Vida, 1992, p.138.
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