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Foto do escritorHeberth Ventura

A pureza apostólica sob ataque: Os Donatistas foram Circunceliões?

Atualizado: 31 de jul. de 2024


Crédito da imagem: Heberth Ventura



Os movimentos anabatistas, ao longo da sua história, desde o período primitivo até hoje, foram muitas vezes alvos das mais indignas calúnias e difamações. O renomado historiador Batista, José Pereira Reis, em sua obra “Breve História dos Batistas”, publicada em sua segunda edição no ano de 1979, descreveu alguns desses movimentos como o povo mais “caluniados da História”.


Já no século II, a Nova Profecia, ou Montanismo como é conhecido hoje, foi alvo de variadas acusações. Entre elas, estavam a alegação de serem influenciados por forças demoníacas em suas práticas de profecia, e a afirmação de que consideravam seu líder Montano como o Espírito Santo. No século IV, na propaganda anti-montanista de Agostinho, os montanistas foram acusados de extrair sangue de crianças de um ano para realizarem a Eucaristia, usando esse sangue misturado com farinha para fazer o pão. Convém observar também que o próprio nome “Montanismo” foi atribuído a eles como uma forma pejorativa, associando-os a Montano, considerado como herege pela oposição proto-católica do século IV. No entanto, o termo em si só foi conhecido no século IV; antes disso foram chamados de outros nomes, alguns também com tom depreciativo.


Outro grupo que foi amplamente caluniado foram os donatistas no norte de África, em meados do século IV. O movimento dos Donatistas surgiu com uma preocupação pela preservação da pureza apostólica da Igreja Cristã. Como profetas de seu tempo, foram os que denunciaram a decadência e apostasia da Igreja nominal, colocando-se à parte dela por não a considerar uma Igreja aos moldes do Novo Testamento. Com a união entre Igreja e Estado, os donatistas viram na Igreja Imperial, “que abarcava a nação em massa, tanto os não convertidos quanto os cristãos” como uma Babilônia secularizada.


Conforme o historiador John Horsch “eles sustentavam que a disciplina, a censura ou a excomunhão daqueles que caíssem em pecado público (como de apostasia diante da perseguição), era uma característica absoluta de uma verdadeira Igreja Cristã”.


É importante acentuar que os donatistas foram fortemente influenciados pelos montanistas e pelos novacianos que o antecederam. Tertuliano, um dos mais brilhantes pais da Igreja no norte da África, como montanista, influenciou diretamente o movimento donatista. Para Maureen A. Tilley (1997, p. 175,176) eles, extraíram de Tertuliano, bem como de Cipriano e outros, uma “herança de Interpretação Bíblica que presava pela literalidade e a aversão à alegoria”. Com isso, “legou a urgência em relação aos mandamentos das Escrituras”.  Dos Montanistas e Novacianos, também herdaram o fervor e devoção espiritual, devotando-se ao Espírito e recebendo sua poderosa influência na maneira de interpretar as Escrituras e na prática cotidiana da vida cristã.


O movimento obviamente gerou reações. Uma igreja complacente com uma vida frouxa na moral e nos costumes começou a associar o grupo com um povo que perturbava a ordem social e realizavam práticas horrendas de violência: os Circunceliões. De acordo com o historiador francês Paul Monceaux (1851-1941), esse grupo surgiu por volta de 316/317 ou em 340, sendo esta última a data mais provável para sua origem. Por terem surgido em um momento de maior influência de Donato, porta-voz e líder dos donatistas, os críticos usaram de uma propaganda difamatória para deslegitimar o movimento, ligando-os aos Circunceliões. Devido ao fato de grande parte das fontes sobre os donatistas serem de seus opositores, os historiadores comumente defendem a partir delas, uma organicidade entre os donatistas e circunceliões. No entanto, a relação orgânica entre circunceliões e donatistas carecem de evidências mais conclusivas.


A questão chave desse estudo é: eram os Circunceliões Donatistas?


Em breves linhas, o termo deriva do fato de viverem “ao redor dos santuários” (circum cellas). Os Circunceliões em resumo eram pessoas tidas como religiosos fanáticos e errantes violentos. Costuma-se descrevê-los como um bando hostis de camponeses fanáticos determinados em impor a fé pela violência. Considerados como servos dos líderes donatistas, eles eram em algumas ocasiões chamados para saquear uma igreja católica ou vilas romanas.


Todd Spellman, comenta:



“Os Circunceliões representavam a alta consideração dos donatistas pelos sacrifícios dos mártires na forma mais extrema. Quando acreditavam que havia chegado sua hora de morrer, os Circunceliões procuravam alguma maneira heroica de morrer. Métodos populares incluíam parar viajantes ou magistrados na estrada e dar-lhes a escolha de matar ou serem mortos. Alguns iam a festivais pagãos e se ofereciam como sacrifícios aos deuses. Outros morriam durante ataques a igrejas ou grandes propriedades.”



Caminhando para uma resposta a essas questões, uma das primeiras coisas que deve ser observada é que, nas fontes históricas que chegaram até nós sobre o donatismo, em muitas delas se encontra uma forte dissensão entre os donatistas e os circunceliões. Isso evidencia que o grupo não compactuava com as práticas de violência desse movimento. Muitos hoje infelizmente desconsideram esse fato presente na documentação histórica.


Não podemos esquecer que essa pretensa relação entre os donatistas e os Circunceliões, muito difundida e crida, foi resultado das propagandas de Optato de Milevo no século IV e Agostinho de Hipona no século V. Essa difamação foi um projeto proposto pelos cecilianistas, considerados como os “católicos” da época.


Os donatistas apelaram muitas vezes a autoridades seculares para lidar com os circunceliões. O historiador presbiteriano James Wharey afirmou com presição: “Não parece, entretanto, que os bispos donatistas, especialmente os melhores entre eles, incitaram ou aprovaram os procedimentos violentos e irregulares, que trouxeram grande reprovação à sua causa. ”


As calúnias contra os donatistas tiveram um impacto duradouro, manchando a imagem do movimento e justificando as repressões ao movimento por parte das autoridades políticas da época. Optato considerava os donatistas como cismático e rebeldes, mas Agostinho, indo além, os consideravam como hereges, totalmente “afastados da Igreja”. Como bem frisou David L. Eastman, Agostinho “protestou contra os donatistas com grande frequência e intensidade” que sua “perspectiva tem impactado as visões dos donatistas até hoje”.


Esses tipos de acusações propagadas por seus opositores, nos servem de lembretes de como as narrativas dos críticos podem conter em sua grande parte, uma visão errada e desmoralizante do movimento.





Heberth Ventura




.oOo.


 



REFERÊNCIAS



EASTMAN, David L. Cristianismo Primitivo no Norte da África: como teólogos africanos moldaram a teologia cristã.  Rio de Janeiro: Pro Nobis Editora, 2022, p. 178, 179.


HORSCH, John. A stort History of Christianity. Cheveland, Ohio: Published By the Author 107 Universirrty St, 1903, p. 63, 67.


SPELLMAN, Todd. The persistence of Donatism: a holistic understanding of the influences that contributed to the resilience of the schism. 1998. Dissertação (Mestrado em Artes) – Lincoln Christian Seminary, Lincoln, Illinois, 1998.


TILLEY, Maureen A. The Bible in Christian North Africa: the Donatist World. Minneapolis: Fortress Press, 1997, p. 175,176.


WHAREY, James. Sketches of church history: comprising a regular series of the most important and interesting events in the history of the church, from the birth of Christ to the nineteenth century. Philadelphia: Presbyterian Board of Publication, 1850, p. 68,69.

 

 

 

 

 

 

 

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7 Comments


silvanasales126
Aug 02, 2024

Muito bom. Esclarecedor.

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Jæīř Fıłhø
Jæīř Fıłhø
Aug 01, 2024

Muito bom saber disso!

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Virginia andrade
Virginia andrade
Aug 01, 2024

❤️‍🔥👏🏻

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Jose Enderson de Sousa
Jose Enderson de Sousa
Aug 01, 2024

🙌🔥

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Alice
Alice
Aug 01, 2024

👏🏻

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